sábado, janeiro 02, 2016

O livro que ainda não li, Wagner Pontes

Texto Publicado no blog da Revista Plural


Um pensamento passou pela minha mente no momento em que pus os olhos naquela pessoa solitária no fundo do ônibus. Sentada de cabeça baixa, de óculos e vestido florido ela lia um livro, quase devorava. E minha tara de leitor só imaginava ter um pescoço elástico para ver o amigo lido.
Lembro quando ainda criança um amigo de minha mãe nos visitava pelo menos uma vez a cada seis meses, para falar da vida, do trabalho, dos filhos e alguma coisa sobre livros. Minha mãe sempre fora uma ávida leitora.
E à hora mais emocionante, depois de tê-lo conhecido pela primeira vez, era a sua partida. Não porque quisesse vê-lo ir embora o mais rápido possível, mas pelo motivo do qual convidava a mim e meu irmão para irmos ver um tesouro escondido. Ele provavelmente trabalhava como editor, pois ao chegarmos ao seu carro e ao abrir o porta-malas existia lá dentro uma quantidade imensa de livros.
Naquela época para quem ainda mal sabia ler, e se empolgava mais com todo aquele ouro dado e os desenhos divertidos das histórias que soltavam a imaginação. A leitura sempre feita por minha mãe nos levava a um estado catatônico. E dormíamos leves, voando entre sonhos de aventuras.
Por vezes uma vaga lembrança daquele homem passa pela minha memória. A feição de seu sorriso ao entregar-me a chave de um mundo sem volta. Um vírus perigoso, quando tocado eleva o espírito.
E muitas vezes penso no insustentável livro. O livro intocado. O livro ainda não lido de memórias míticas, de algum segredo guardado nas páginas amareladas pelo ato do tempo.
Os personagens não vividos continuam fechados ali entre frases, versos do próprio umbigo. O livro e seu par. O encontro de seu leitor inimigo. O leitor à procura da frase perfeita. A narrativa à espera de ser o livro.

Ainda sonho com esse amigo de real beleza, abstrata, impressa e manuseada. O desejo de ter uma vida eterna como um Drácula maldito a ler todos os clássicos e contemporâneos ainda não lidos.

Nenhum comentário: