sexta-feira, junho 10, 2011

O Rumor da Língua

Tudo que pensei sobre a escrita, Barthes já dizia em lindas palavras.

O RUMOR DA LÍNGUA
A morte do autor

“Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfarçado em mulher, Balzac escreve esta frase: “Era a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos”. Quem fala assim? É o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado, por sua experiência pessoal, de uma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia romântica? Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.

Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. Entretanto, o sentimento desse fenômeno tem sido variável; nas sociedades etnográficas, a narrativa nunca é assumida por uma pessoa, mas por um mediador, xamã ou recitante, de quem, a rigor, se pode admirar a performance (isto é, o domínio do código narrativo), mas nunca o “gênio”. O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. Então é lógico que, em matéria de literatura, seja o positivismo, resumo e ponto de chegada da ideologia capitalista, que tenha concedido a maior importância à “pessoa” do autor.

O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovsky é o seu vício: a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal à voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a entregar a sua “confidência”.

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.”




BARTHES, Roland. O Rumor da língua – editora -Brasiliense 1988.

5 comentários:

Gustavo Martins disse...

Prezado Wagner: para saber o que é uma MCPmate, copie este link
http://minicontosperversos.blogspot.com/search/label/MCPmate
na barra de endereços do seu browser, dê enter e divirta-se

Outra boa pedida é seguir o #concursofotograficoMCP (as origens)

Abração

Gustavo Martins disse...

Sim, amigo. Cai no blog, mas corra a barra de rolagem para baixo e veja o que aparece... Só filé!

Alexandre Marques Rodrigues disse...

A tara pela figura do autor é um resto do Romantismo, ainda não depurado. Um dia voltaremos aos livros anônimos? Acho que não.

O autor não quer ser confundido com seus personagens, ter a obra entendida através de sua vida; mas quais autores negam o sucesso, a imagem estampada na mídia em troca do anonimato pessoal que evitaria essas confusões?

Não se pode ter tudo.

Alexandre Marques Rodrigues disse...

Agradeço a visita ao Ler até Escrever, o comentário ao conto que timidamente postei por lá.

Deu mais trabalho fotografar os fósforos que ilustram o conto do que escrevê-lo. Algumas histórias se escrevem sozinhas.

Alessandra Safra disse...

adorei o blog. quero ler tudo. abraços