domingo, setembro 23, 2007

Desentranhado de Schreber

Desentranhado de Schreber
Contar é o método mais eficiente que consegui desenvolver para impedir a manifestação dos urros; tanto que eles emudecem assim que o cortejo dos números parte do cérebro para a boca. O avanço é decisivo em primeiro lugar porque desmente a versão de que sou um idiota incapaz de pensar; em segundo porque é desse modo que concilio o sono. Na realidade, só quem emite uma sucessão de urros na hora de dormir sabe a que ponto o fenômeno é inoportuno. No meu caso ele muitas vezes me faz pular da cama, pôr os chinelos, girar nos calcanhares e cumprir uma tarefa suficientemente clara para provar que sou um ser racional – por exemplo enumerar os reis da França ou fazer e desfazer nós consecutivos nas quatro pontas de um lenço. Algo semelhante ocorre quando visito lugares públicos na companhia de pessoas educadas. Aí a intromissão dos urros nas pausas da conversa é fatal, a menos que eu permaneça contando sem parar. Com a providência, o máximo que se ouvem são ruídos que os interlocutores interpretam como tosse, pigarro e bocejos desastrados, ou seja, nada que se preste a um escândalo. Em compensação, fico eufórico quando passeio pelo campo: são momentos bem-aventurados em que simplesmente deixo os urros virem a mim. Nem preciso dizer que eles invadem o meu corpo como uma torrente de água enquanto o espírito se rejubila, atravessado por incontáveis gritos e clarões. É evidente que se alguém estiver observando a cena de longe pensará que tem diante de si um louco; por isso não é de hoje a convicção de que basta uma palavra para que eu suprima os urros e demonstre minha completa lucidez mental.
Via: Revista Piauí

2 comentários:

Nata disse...

As palavras são perigosas, mas também podem ser salvadoras!

Pode blogar sim, moço! Beijos

Nata disse...

:)

Obrigada!