segunda-feira, abril 20, 2015

Aprendiz sem cavalete, por Wagner Pontes no QUOTIDIANOS

Mais um conto meu publicado no Quotidianos com arte da querida Carolina Mancini. 

Boa Leitura!!

 Texto: Wagner Bezerra

         São onze da manhã e acendo um cigarro, olho entre a cortina a luz deslizar macia até minha pele. O calor beija vagarosamente, esquenta e pestaneja minha respiração na lembrança de seu hálito. Ela poderia ter partido antes. Um carro disparara no vento. Uma flor na margem da calçada respirara resignada, enquanto seus polens suspiraram todo o ar de encontro aos cabelos daquele amor, fosco.
        Abro a janela e tento respirar profundamente, mas meu corpo não suporta toda essa imensidão. O absurdo tem me consumido em segundos. Olho o relógio da parede do armazém a frente de meu prédio e observo um gordinho de calça jeans, camisa polo azul ensacada, meio desbotada e puída; o seu rosto tem certa suavidade e uma mistura de “idiotice” com traços leves capaz de fazer com que qualquer pessoa o respeitasse, mas num átimo não acredito nisso. Corpulento e gorduroso, as sobrancelhas finas, os olhos pequenos, a boca apertada de dentes amarelados, bigode ralo e para acrescentar esse aspecto surrado de se viver, ele está sempre suado de cabelo empastado. Sempre abre a primeira nota do cadeado daquele buraco. E sinto certa energia emanar daquele lugar desde o último acontecimento há duas semanas. Dois caras, provavelmente funcionários da empresa jogavam conversa fora numa noite de sábado, por volta das vinte e uma horas. O cansaço, a estagiária morena da recepção de seios fartos e bumbum eriçado, ou quem sabe sobre quanto dinheiro poderia ser investido naquela espelunca com um projeto de Cabaret Souvenir requintado à moda dos anos 20, a Era de Ouro em Paris, comprando centenas de prostitutas da Rua do Sossego 51. Ah, aquela maldita! Desde que decidira seguir o seu instinto de devassa!
         Não obstante, sempre estou a querer voltar ao começo da história, percebo que meus pensamentos vivem por si, e há uma dificuldade nestas últimas décadas em manter a linearidade, por vezes esqueço o que estava a falar.
         ‘Sérgio vem cá! Estou toda molhadinha e preciso de você agora aqui na minha cama!’ Fico preocupado todas as vezes uma sirene soa perto daqui, e a luz intercala com a escuridão de um azul e um vermelho paixão. Ah, se eu morasse perto da estação! Perto da estação tudo ficaria bem melhor. A passagem das rodas de um trem por cima do trilho e todo aquele peso de matéria férrea, talvez não incomode tanto. Já que, me lembra de quando juntamente a meu pai brincávamos no parque 13 de Maio do bairro da Boa Vista, eu sentado numa roda-viva e ele a me rodar. Quando se é criança o dia não tem números nem razão, só há motivos para aproveitar cada piso descalço na terra seca ou molhada, com o vento a ecoar por volta da grama recém cortada pelo senhor graúdo. E o cheiro da grama deitada, o gozo da lâmina perdida no chão. O subir e descer da arma a fatiar rapidamente as pestanas daquela terra amargada pelo calor do sol era capaz de congelar os olhos infantis e pueris de qualquer criança.
           Pequenos atos e uma expansão do espaço. Era como quem está a ver o nascer do sol pela primeira vez, ou quando se surpreende com aquela que um dia disse te amar diante do erro mais fatal e obscuro.
         A multidão sempre é enternecida por explosões sem sentido, não compreendem e nunca chegarão a matiz de que a excitação da alma é a extensão do universo. Ah, se soubessem disso! Se soubessem disso, a respiração seria outra. A vida, a nossa vida poderia ter sido outra.
          Há dois meses tenho o mesmo sonho. A falta de ar, o suor frio entorpece minhas mãos, o tremor do corpo à dormência dos dedos e a exasperação da alma são os momentos mais terríveis até acordar. A exatidão do acordar e a confusão de ter sempre finais diferentes têm me seduzido a dormir todas as noites no mesmo horário. A rotina é o conflito de estar livre na prisão em par com a humanidade. Sempre a vejo voar tão perto do céu, dos pássaros, das árvores onde uma rajada de vento teima sustentar o ar de todo aquele peso.
        Quantas vezes a escutei dizer: ‘o absurdo é uma pluma a cair das asas de um pássaro solitário enquanto plana no céu?!…’ A insustentável leveza da pluma traça e rabisca o ar como pincéis de um urgente aprendiz sem cavalete, e é a única certeza que temos do firmamento ao chão.

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