sábado, junho 23, 2012

Ulysses de Joyce, por Jorge Luís Borges

A nova tradução saída no Brasil realizada pela Editora Companhia das Letras, causara um grande reboliço e atenção acerca da primorosa obra esquecida e renegada por muitos. Já que grande parte dos leitores consideram sua linguagem de uma complexidade "irritante". Mas resolvi postar uma das primeiras pessoas a falar do grande Ulysses de James Joyce, o nosso aclamado Jorge Luís Borges. Que aos vinte seis anos terminava de ler o então famoso livro lançado há três (1922) e eis o texto sobre o romance em sua próprias palavras, leia e reflita. E não esqueça de ler o clássico, há muito a se aprender com a densa obra!

Marilyn Monroe ( (1955) by Eve Arnold.


“O Ulysses de Joyce” por Jorge Luis Borges


Sou o primeiro aventureiro hispânico a atracar ao livro de Joyce: país emaranhado e montanhoso que Válery Larbaud percorreu e cuja contextura traçou com enorme precisão cartográfica (N. R. F., tomo XVIII), mas que reincidirei em descrever, pese o inestudioso e o transitório de minha estadia em seus confins. Falarei dele com a licença que minha admiração confere e com a vaga intensidade que havia nos antigos viajantes, ao descrever a terra que era nova diante de seu assombro errante e em cujos relatos aunaram-se o fabuloso e o verídico, o curso do Amazonas e a Cidade dos Césares.

Confesso não ter desbravado as setecentas páginas que o integram, confesso tê-lo praticado somente por trechos e, no entanto, sei o que ele é, com essa aventurosa e legítima certeza que há em nós, ao afirmar nosso conhecimento de uma cidade, sem adjudicar-nos por isso a intimidade das tantas ruas que inclui.

***

James Joyce é irlandês. Os irlandeses sempre foram agitadores famosos da literatura da Inglaterra. Menos sensíveis ao decoro verbal que seus aborrecidos senhores, menos propensos a embotar seu olhar na superfície da lua e a decifrar com largo pranto solto a fugacidade dos rios, fizeram profundas incursões nas letras inglesas, talando toda a exuberância retórica com desenganada impiedade. Jonathan Swift agiu como um forte ácido na altivez de nossa esperança humana e dos quais Micrômegas e Candido de Voltaire não são senão um barateamento de seu sério niilismo; Lorenzo Sterne desbaratou o romance com seu jubiloso manejo da expectativa zombeteira e das digressões oblíquas, fontes hoje de grande renome; Bernard Shaw é a mais grata realidade das letras atuais. De Joyce direi que exerce dignamente esse hábito da ousadia.

Sua vida no espaço e no tempo é abarcável em poucas linhas, que minha ignorância abreviará. Nasceu em oitenta e dois no Dublin, filho de uma família abastada e piedosamente católica. Educaram-no os jesuítas; sabemos que possui uma cultura clássica, que não comete errôneas quantidades na dicção de frases latinas, que frequentou a escolástica, que dividiu suas andanças por diversos lugares da Europa e que seus filhos nasceram na Itália. Compôs canções, contos breves e um romance de catedralesca grandeza: a que motiva estes apontamentos.

Ulysses é ilustre de várias formas. Seu viver parece situado em um só plano, sem essas gradações idealizadas que vão do mundo subjetivo ao objetivo, do caprichoso sonho do eu ao transitado sonho de todos. A conjectura, a suspeita, o pensamento em voo, a lembrança, o preguiçosamente pensado e o executado com eficácia gozam de iguais privilégios nele e a perspectiva é ausência. Esse amálgama do real e do sonhado bem poderia invocar o beneplácito de Kant e de Schopenhauer. O primeiro deles não deu com outra distinção entre o sonho e a vida que a legitimada pelo nexo causal, que é constante na cotidianidade e entre os sonhos não existe; o segundo não encontra mais critério para diferenciá-los que o meramente empírico que procura o despertar. Acrescentou, com prolixa ilustração que a vida real e os sonhos são páginas de um mesmo livro, que o costume chama vida real a leitura ordenada e sonho a indigência e o ócio que a folheiam. Quero, assim mesmo, recordar o problema que Gustav Spiller enunciou (The Mind of Man, pp. 322-23) sobre a realidade relativa de um quarto na objetividade, na imaginação e duplicado num espelho e que resolve, justamente opinando que os três são reais e que abarcam opticamente o mesmo fragmento de espaço.

Como se vê, a oliveira de Minerva joga uma sombra mais branda que o laurel sobre a nascente de Ulysses. Não encontro para ele antecessores literários, salvo o possível Dostoievski da escatologia final de Crime e castigo, e isso, sabe-se lá. Reverenciemos o provisório milagre.

Seu tenaz exame das minúcias mais irredutíveis que formam a consciência obriga Joyce a estacar a fugacidade do tempo e a diferir o movimento do tempo com um gesto apaziguador, adverso a impaciência do aguilhão que havia no drama inglês e que encerrava a vida de seus heróis na atropelada estreiteza de algumas horas populosas. Se Shakespeare – segundo sua própria metáfora – pôs no giro de um relógio de areia as proezas dos anos, Joyce inverte o procedimento e desdobra o único dia de seu herói em muitos dias do leitor (não disse nada sobre suas noites).

Nas páginas do Ulysses a realidade total fervilha com agitação de picadeiro. Não a medíocre realidade de quem, no mundo, só se dá conta das distraídas operações da alma e seu medo ambicioso de não superar a morte, nem essa outra realidade que entra pelos sentidos e na qual convivem nossa carne e a calçada, a lua e a cisterna. A dualidade da existência está nele: essa inquietação ontológica que não se assombra meramente de ser, senão de ser neste mundo precisamente, onde há corredores e palavras e naipes e escritas elétricas na limpidez da noite. Em nenhum livro – fora os compostos por Ramón – testemunhamos a presença atual das coisas com tão convincente firmeza. Todas estão latentes e a dicção de qualquer voz é hábil para que surjam e nos percam em sua brusca avenida. De Quincey narra que bastava em seus sonhos a breve nomeação cônsul romanus para suscitar multisonoras visões de voos de bandeiras e esplendor militar. Joyce no capítulo quinze de sua obra traça um delírio em um bordel e que ao eventual conjuro de qualquer frase solta ou ideia congrega cem – a cifra não é ponderação, é verídica – de interlocutores absurdos e de transes impossíveis.

Joyce pinta uma jornada contemporânea e amontoa em seu discurso uma variedade de episódios que são a equivalência espiritual daqueles que canta a Odisséia.

É milionário em vocábulos e estilos. Em seu comércio, junto ao tesouro prodigioso de vozes que se somam ao idioma inglês e concedem a ele cesarismo sobre o mundo, correm dobrões castelhanos e siclos de Judá e dinares latinos e moedas antigas, desde onde cresce o trevo da Irlanda. Sua pluma inumerável exerce todas as figuras retóricas. Cada episódio é exaltação de uma artimanha peculiar, e seu vocabulário é privativo. Um está escrito em silogismos, outro em indagações e respostas, outro em sequência narrativa e em dois está o monólogo silencioso, que é uma forma inédita (derivada do francês Edouard Dujardin, segundo declaração feita por Joyce a Larbaud) e por ele ouvimos seus heróis pensarem prolixamente. Junto aos novos gracejos das incoerências totais e entre chacotas abordoadas em prosa e verso macarrônico é comum levantarem-se edifícios de rigidez latina, como o discurso do egípcio a Moisés. Joyce é audaz como uma proa e universal como a rosa dos ventos. Daqui a dez anos – seu livro já facilitado por comentadores mais teimosos e mais piedosos que eu – desfrutaremos dele. Enquanto isso, na impossibilidade de levar o Ulysses a Neuquén e de estudá-lo em sua pausada quietude, quero fazer minhas as decentes palavras que confessou Lope de Veja sobre Gongóra:

Seja o que for, eu hei de estimar e amar o divino engenho desse Cavaleiro, tomando dele o que entender com humildade e admirando com veneração o que o entendimento não alcançar.

Confira o texto em espanhol/Via: Página 12/Radar

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