domingo, maio 20, 2012

Trecho de Paciência, por Bernado Soares

O video talvez seja só um adendo para o texto de Fernando Pessoa...


Nomeado pra o Vimeo Award!
Curta gravado com um telefone Nokia N8. Vencedor da competção Nokia Shorts  2011.

Diretor: James W Griffiths
Produtor: Kurban Kassam
Diretor de Fotografia: Christopher Moon
Editor: Marianne Kuopanportti 
Sound Design: Mauricio d'Orey
Música composta por: Lennert Busch

Consiga a música no iTunes: http://tinyurl.com/6acl6yp

***

Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo, (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro-ente, desapareceria. 

Possuímos a alma? — Ouve-me em silêncio — Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas. 

Que possuímos? que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne úmida dos lábios perecíveis em mucosas; a própria cópula é um contato apenas, um contato esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro corpo... Que possuímos nós? que possuímos?


As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela conosco sempre, e assim, realmente possuímos. Desenganemos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não fales. A memória, afinal, é a sensação do passado... E toda a sensação é uma ilusão...

— Escuta-me, escuta-me sempre — Escuta-me e não olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo (...), nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago (...) — Escuta-me em silêncio.

Nós não possuímos as nossas sensações... Nós não nos possuímos nelas.

(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de (...) onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçadamente.)


*PESSOA, Fernando. Livro do Desassosego: composto por Bernado Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Editora: Companhia das Letras, 1999. (p. 329-30)

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