terça-feira, novembro 13, 2007

Poemas de Cesare Pavese

TRABALHAR CANSA
Travessar uma rua fugindo de casa só um menino o faria, mas este homem que passa todo o dia nas ruas não é mais menino e não foge de casa. Em pleno verão, até as praças se tornam vazias de tarde, deitadas sob o sol que começa a cair, e este homem que chega por um parque de plantas inúteis detém-se. Vale a pena ser só para estar cada vez mais sozinho? Simplesmente vagar, pois as praças e ruas estão ermas. Forçoso é abordar uma mulher e falar-lhe e fazê-la viver com você. Do contrário, se fala sozinho. É por isso que às vezes algum bêbado à noite dispara discursos e repassa os projetos de toda sua vida. Certamente não é esperando na praça deserta que se encontram pessoas, mas quem anda nas ruas se detém vez ou outra. Estivessem a dois, mesmo andando na rua, sua casa estaria onde está a mulher. Valeria a pena. Mas de noite essa praça retorna ao vazio e este homem que passa não vê as fachadas entre luzes inúteis nem ergue seus olhos: sente só o ladrilho que outros homens fizeram com mãos secas e duras, assim como as suas. Não é justo deixar-se na praça deserta. Com certeza há de andar pela rua a mulher que, chamada, viria ajudar com a casa.
ATAVISMO
O garoto respira mais fresco, escondido por postigos, olhando pra rua. Da clara fissura se percebe a calçada, no sol. Não caminha ninguém pela rua. O rapaz gostaria de sair assim nu – é de todos a rua – e afogar-se no sol. Na cidade, não pode. No campo, talvez, se não fosse o profundo do céu na cabeça, que amedronta e humilha. Há a relva gelada que faz cócega nos pés, mas as plantas que miram e os arbustos e troncos são olhos severos para um corpo tão débil e sem viço, que treme. Até a relva é estranha e repugna ao contato. Mas a rua é deserta. Se alguém a cruzasse, lá do escuro o rapaz ousaria fitá-lo e pensar que as pessoas escondem um corpo. Mas quem passa é um cavalo de músculos fortes, e a calçada ressoa. O cavalo demora a partir, nu e sem pejo, debaixo do sol: vai marchando no meio da rua. O rapaz, que queria ser forte e moreno como ele e quem sabe puxar a carroça, ousaria mostrar-se. Se há um corpo, é preciso exibi-lo. O rapaz não percebe que cada um tem um corpo. O velhote enrugado que passava de dia não pode ter corpo assim pálido e triste; não pode haver nada de tamanho pavor. Nem sequer os adultos ou as mães que oferecem o peito aos meninos estão nus. Têm um corpo somente os rapazes. O garoto não ousa mirar-se no escuro, mas bem sabe que deve afogar-se no sol e habituar-se aos olhares do céu, para ser depois homem.
ENCONTRO
Estas duras colinas, que estão em meu corpo e o abalam com tantas lembranças, me abriram o prodígio da mulher que não sabe que a vivo e não posso entendê-la. Encontrei-a uma noite: uma mancha mais clara sob estrelas ambíguas, na névoa do estio. Recendia ao redor o perfume dos montes, mais profundo que a sombra, e de golpe soou, como vinda de dentro do monte, uma voz mais precisa e mais áspera – a voz de algum tempo perdido. Certas vezes a vejo, e ela vive adiante, definida e imutável como uma lembrança. Eu jamais consegui alcançá-la, e a sua presença toda vez me escapole e me leva pra longe. Se é bela, não sei. Mas eu sei que é bem jovem: tanto assim que me ocorre, ao pensá-la, a imagem de uma infância distante vivida por entre as colinas. É como a manhã, desenhando em meus olhos todo céu mais distante daquelas antigas manhãs. Tem nos olhos um firme propósito: a luz mais precisa que a alvorada jamais espalhou nas colinas. Eu a fiz desde o fundo de todas as coisas que me são mais queridas, e não a compreendo.
ULISSES
Este é um velho frustrado por ter feito seu filho muito tarde. Perscrutam-se às vezes, na cara – noutros tempos bastava um tabefe. (O pai sai e retorna com o fi lho que esfrega a bochecha sem erguer mais os olhos.) O velho se senta até a noite, diante da grande janela, mas não passa ninguém pela rua deserta. De manhã, o rapaz escapou e retorna esta noite. Escarnece, decerto. A ninguém vai dizer se comeu seu almoço. Talvez tenha os olhos pesados e deite em silêncio: duas botas de lama. Após um mês de chuva a manhã era azul. Pela fresca janela entra um cheiro de folhas amargo. Já o velho não se arreda do escuro e não dorme de noite, mas queria ter sono e esquecer-se de tudo, como outrora, ao voltar de uma longa jornada. Aquecia-se, antes, gritando e batendo. O rapaz, que já está de regresso, não leva mais tapas. O rapaz começou a crescer e descobre cada dia algo novo e não fala a ninguém.
Não há nada na rua que escape ao olhar daqui desta janela. E o rapaz perambula todo o dia na rua. Não busca mulheres e não brinca no chão. Ao final, sempre volta. O rapaz tem um jeito de ir-se de casa que, quem fica, se sente jogado de lado.
TERRAS QUEIMADAS
Fala o jovem esguio que esteve em Turim. O mar grande se estende, ocultado por rochas, e reflete no céu um azul deslavado. As pupilas dos que o ouvem reluzem. Chegar a Turim pela noite é ver logo mulheres vagando nas ruas, maliciosas, vestidas pros olhos, que caminham sozinhas. Todas elas trabalham pela roupa que vestem, cada qual para uma hora. Há matizes propícios às manhãs como há cores pra sair pelos parques, aos prazeres noturnos. Mulheres que esperam e se sentem sozinhas, conhecem a vida por dentro. E são livres. A elas nada se recusa. Ouço o mar que golpeia e rebate, cansado, na costa. Vejo os olhos profundos dos jovens à volta coruscarem. Bem perto uma aléia de figos desespera de tédio na rocha encarnada. Há algumas, paradas, que fumam sozinhas, que se encontram à noite e se deixam de dia, ao café, como amigos. Todas elas são jovens. De um homem esperam presteza e espírito, e que seja gentil. Basta ir à colina e que chova: abandonam-se como meninas, mas já sabem gozar o amor. Mais espertas que um homem. São vivazes e ousadas, e até nuas conversam com o brilho de sempre. Eu o escuto. Observei as olheiras do jovem esguio, bem profundas. Por elas passaram outrora esses verdes. Fumarei noite adentro, esquecendo até o mar.
by: Cesare Pavese

3 comentários:

Anônimo disse...

nossa, adoreei.
nem conhecia, nunca nem tinha ouvido falar dele.
não sei porque mas escutei uma música que eu acho que vc vai gostar, sei lá, 'parece com vc'.
banda : Eta Carinae
música : Véu da noite
se vc não achar pra baixar e quiser, me avisa que eu hospedo e te passo o link :)
:***

Giuliano Gimenez disse...

Qual a referencia dos poemas, meu chapa?

Wagner Bezerra disse...

Olá Giuliano, realmente esqueci de colocar as referências, mas os poemas foram retirados da Revista Piauí não lembro o numero da edição...mas quando achar coloco aqui, blz?! =D


Abraço!